sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

PORQUE A VOZ DO BRASIL NÃO ME REPRESENTA

Que o Brasil adora importar programas de sucesso de outros países não é novidade, haja visto a proliferação dos chamados reality shows que dominam a televisão nacional há alguns anos. Criticados ferozmente como lixo cultural, os programas, paradoxalmente, atingem a milhões de espectadores, mesmo que a essa altura dos acontecimentos todos saibam de sua tendência nada sutil de manipulação de resultados ou edições tendenciosas. O que os estudiosos da cultura pop - sim, eles existem - não compreendem, do alto de sua arrogância erudita, é que a audiência que assiste a esses programas não procuram nada além de entretenimento puro e simples. Ninguém assiste ao "Big Brother Brasil" com objetivos outros que não seja exatamente o que todo mundo faz desde que o mundo é mundo: bisbilhotar a vida alheia e meter o bedelho - só que dessa vez com a anuência de toda uma sociedade.

Mas o assunto aqui é bem outro. "The Voice Brasil" acabou nesta quinta-feira 26 de dezembro e, como era de se esperar, suscitou as mais diversas polêmicas. O formato - alterado convenientemente para permitir manobras nem sempre claras - provou-se um grande êxito em termos de audiência, principalmente com sua mudança dos domingos à tarde para as noites de quinta-feira. Mas, se desde a escolha dos jurados já havia uma certa tendência à popularização exagerada do show - com Claudia Leitte sempre imitando as juradas da versão americana e forçando uma simpatia que não tem e Daniel tentando convencer que entende dos meandros musicais que fogem de seu estilo sertanejo/romântico - a escolha do vencedor, Sam Alves, é que causou a maior discordância entre os fãs, tanto do programa quanto dos candidatos. Com torcidas fervorosas sendo anunciadas nas redes sociais, "The Voice Brasil" substituiu, por alguns meses, as rixas esportivas. De técnicos de futebol, repentinamente, os brasileiros se transmutaram em perfeitos entendedores de música.

Normal e natural. Em um país com uma cultura musical tão rica e vasta, não há quem não goste de música e, como ocorre em qualquer situação, todos se acham os donos da verdade. Mas não deixa de ser decepcionante que um programa que diz buscar "uma voz brasileira" tenha escolhido como tal um jovem cantor que passou a maior parte da vida nos EUA e tenha, como consequência natural desse histórico, referências musicais ianques, em detrimento da nacional. Sam Alves tem uma ótima voz, sim, isso não se discute. Mas sua vitória soa mais como a vitória de alguém mais "vendável" do que alguém realmente mais promissor. Em toda a sua trajetória no programa, Sam demonstrou notável domínio vocal e carisma, mas em todas as ocasiões em que precisou sair de sua zona de conforto - leia-se músicas em inglês - não conseguiu atingir mais do que o correto. E o fato que veio à público agora - de que ele foi convidado a fazer parte do programa depois de não ter sido classificado na versão americana - apenas reitera a opinião de que sua vitória pode ter sido decidida sem a interferência do público.

Não é uma questão de xenofobia, mesmo porque é incabível esse tipo de preconceito. Mas não deixa de ser decepcionante ver que um programa que poderia revelar vozes mais potentes e calorosas, capazes de reaquecer o mercado de música brasileira, tenha se deixado levar pelo mercantilismo óbvio. Tanto não é um preconceito às avessas - que exige regionalismos tolos - que nem mesmo Lucy Alves, munida de sanfona e piano em suas apresentações e portanto, mais portadora do título de "cara brasileira" merecia sagrar-se campeã, por deixar sua personalidade ser sepultada pela lembrança de outras cantoras que fazem melhor há anos o que ela tentou fazer agora - Elba Ramalho e Amelinha, apenas para citar dois exemplos. E o Brasil é tão grande que chega a soar simplismo rotular alguém como "brasileiro". A música feita no Nordeste é igual à feita no sul? Xaxado é mais brasileiro que samba? E a bossa nova, onde se encontra nisso tudo?

Rubens Daniel cantou Beatles e Coldplay, mas saiu-se igualmente bem entoando um Guilherme Arantes das antigas, o que demonstra, no mínimo, um conhecimento mais profundo da música de seu país. Dom Paulinho Lima - que Lulu Santos erroneamente eliminou em favor da péssima Luana Camarah - tinha voz de cantor de blues, mas deu show cantando Tony Tornado quando precisou (e mesmo que o próprio Tony tenha emulado o ritmo americano em seu canto, cobriu-o com um genial toque brasileiro). Alessandra Crispim lembrava o tom de Elis Regina mas tinha personalidade própria. Marcos Lessa matava a saudade de Emílio Santiago cantando Edu Lobo e Chico Buarque. Todos eles foram preteridos por um cantor derivativo que, se não estragar a carreira cantando hinos evangélicos, irá tornar-se ídolo do mesmo público que gosta de boy bands. E se existe uma prova de que os votos foram dados ao visual mais do que às vozes e personalidades dos candidatos, a votação aberta uma semana antes da final - antes mesmo da apresentação final, note-se - já demonstra que não se pode levar a sério um programa tão nitidamente desonesto e apressado.

A música brasileira é riquíssima. Seja a sofisticação simples de Tom Jobim, a poesia métrica e social de Chico Buarque e Caetano Veloso, as vozes potentes de Angela Roro, Bethânia e Ana Carolina, a suavidade de Marisa Monte, Fernanda Takai, Vanessa da Matta, Roberta Sá, os saudosos timbres de Elis, Clara Nunes e Cássia Eller. Seja o rock melódico de Cazuza e Renato Russo, o ritmo contagiante de Alcione, a sutileza de Vinícius de Moraes e o nordeste forte de Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Zé e Elba Ramalho. O Brasil é enorme e uma fonte inesgotável de grandes talentos. Mas, em uma época em que nenhum desses nomes toca mais - ou vende mais - do que atrocidades como Anitta, Naldo e afins, não deixa de ser previsível que uma voz rejeitada nos EUA leve o título de "A voz do Brasil".

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