terça-feira, 8 de abril de 2014

O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM "EM FAMÍLIA"?

Depois de meses a fio sendo obrigado a aturar os absurdos de "Amor à vida", o fiel público noveleiro tinha motivos de sobra para comemorar a estreia de "Em família", no dia 03 de fevereiro. Primeiro, o currículo do autor Manoel Carlos deixava antever uma qualidade rara no texto e personagens bem construídos. Depois, saíam de cenas os vilões cartunescos e inverossímeis de Walcyr Carrasco para dar lugar a gente muito mais perto da realidade - ainda que não seja muita gente que frequente os ambientes sofisticados do Leblon retratados na novela, é muito mais fácil acreditar em uma mulher obcecada pela maternidade do que em uma secretária vingativa que resolve cegar o marido mais velho, afinal de contas. Por que, então, mais de dois meses depois de sua estreia, a história da 9ª Helena criada pelo autor carioca ainda não empolgou sua audiência?

Bom, qualquer pessoa - QUALQUER pessoa, até aquela dotada da maior boa-vontade do mundo - há de convir que é um desafio à lógica entender a escalação de elenco na família da protagonista. Natália do Valle ser mãe de Julia Lemmertz já é forçar a barra em limites estratosféricos, mas a coisa se estende ad infinitum: Ana Beatriz Nogueira é mãe de Gabriel Braga Nunes, Vanessa Gerbelli é a tia mais velha de Júlia, Giovanna Antonelli é irmã mais nova do Thiago Mendonça... enfim, tem pra todos os gostos. Aparentemente, o único integrante do elenco que tem a idade real do personagem é Paulo José - felizmente lembrado pela Globo como o grande ator que é. E Antonelli, é bom que se diga, faz pela milésima vez a mesma personagem que vem fazendo desde a Capitu, de "Laços de família". Ah, não é? Ok, ela não é garota de programa, nem vilã loira, nem delegada, nem vive no Marrocos, mas o tom de voz e a interpretação "naturalista" - também conhecida como "seja você mesma que tá tudo bem" - mostram que, apesar dos fãs, ela não é uma atriz das mais capazes, além de ser dona de uma personagem pra lá de chata - e Maneco vai penar em fazer o público torcer por um casal lésbico onde uma das partes abandona o marido doente.

E se o texto de "Em família" é um bálsamo para os ouvidos daqueles que passaram quase um ano escutando os diálogos de teatro escolar de "Amor à vida", a lentidão com que a trama se desenvolve já está fazendo muita gente abandonar o barco. Depois de se ver obrigada a apressar a edição dos capítulos iniciais - que mostrava como começou a obsessão entre Laerte e Helena (porque é complicado acreditar que é amor algo tão doentio) - porque a audiência estava pedindo mais ação, era de se imaginar que a Globo solicitaria ao veterano autor um pouco mais de pressa. Não é o que está acontecendo. Se o público ficar uma semana inteira sem assistir à novela, vai voltar a prestigiá-la praticamente no mesmo ponto onde parou. O triângulo amoroso Helena-Laerte-Luiza (Bruna Marquezine dando conta do recado sem muito esforço) ainda não saiu do lugar, ilustrado pelo irritante som da flauta do protagonista e atrapalhado por uma das poucas personagens de atitude na novela, a Shirley de Vivianne Pasmanter - que, apesar disso, faz pela terceira vez uma antagonista criada por Manoel Carlos.


Somada a esse ritmo de cágado - que nem mesmo a poesia dos diálogos consegue disfarçar, principalmente com a direção quase contemplativa de Jayme Monjardim - existe a trilha sonora. Não deixa de ser ótimo ouvir bossa nova desde a abertura até o encerramento, mas a impressão que se tem é que desde "Laços de família" as músicas que acompanham as Helenas do autor são sempre as mesmas. Ana Carolina cantando "Eu sei que vou te amar" nem dá para comparar com Daniel uivando "Maravida", mas mesmo assim é complicado se empolgar com Sandy e Manu Gavassi - cantorazinha de quinta categoria e atriz ainda pior escalada como a namorada do filho de Laerte, vivido por Ronny Kriwat.

Mas nem tudo é ruim na novela das nove. Só o fato de não ter um núcleo cômico sem graça e prescindir de gente gritando bordões de "Zorra total" já é um alívio para a inteligência do espectador, mas outras qualidades presentes podem reverter o quadro de audiência insatisfatória. Vanessa Gerbelli e Angela Vieira tem em mãos personagens ricas que tem tudo para monopolizar a atenção. O núcleo do asilo para idosos pode fazer graça sem apelar para o humor rasteiro, além de contar com a ótima Betty Goffman como a vilã Miss Lauren. Tramas interessantes - como a de André (Bruno Gissoni) que renega a mãe adotiva negra - podem assumir maior importância com o desenrolar da história e até mesmo a história central, quando realmente começar, pode atear fogo ao horário nobre - apesar das rusgas de bastidores que vem atrapalhando ainda mais seu caminho para o sucesso. Eu ainda acredito em "Em família".

domingo, 30 de março de 2014

REGINA DUARTE: DE NAMORADINHA A ÍCONE

A história da televisão brasileira não seria a mesma sem Regina Duarte. Exagero? Dificilmente, uma vez que em seu currículo constam alguns dos maiores fenômenos de audiência e popularidade da teledramaturgia nacional. O nome de Regina - nascida em Franca, no interior de São Paulo, filha de um militar e uma professora de piano - está nos créditos de "Irmãos Coragem", "Selva de pedra", "Malu mulher", "Sétimo sentido", "Roque Santeiro", "Vale tudo" e "Rainha da sucata", além da tríade de Helenas de Manoel Carlos que protagonizou de 1995 a 2006 - em "História de amor", "Por amor" e "Páginas da vida". Mesmo que jamais tivesse participado de mais de uma dezena de filmes e peças de teatro, a ex-Namoradinha do Brasil já teria seu nome escrito indelevelmente no coração e na mente de toda a população brasileira, mesmo daqueles que questionam seu posicionamento político - sim, Regina, como acontece com toda pessoa pública que tem a coragem de manifestar suas ideologias, passou por maus bocados graças ao patrulhamento ideológico que também já fez estragos nas carreiras de Marília Pêra e Cláudia Raia.

Nascida em 1947, Regina iniciou a carreira de atriz em 1965, tanto no teatro - em uma montagem de  "A megera domada" dirigida por Antunes Filho - quanto na televisão, na novela "A deusa vencida", de Ivani Ribeiro, ainda na TV Excelsior. Foi preciso que outras seis novelas pavimentassem seu caminho até a Globo, onde estreou somente em 1969, mas em grande estilo. Ela foi Andréa, a protagonista de "Véu de noiva", a primeira novela global que dialogava com a realidade brasileira, em detrimento dos melodramas absurdos de Gloria Magadan - autora mexicana que enfiava goela abaixo do espectador rocambolescas tramas passadas em países exóticos. Escrita por Janete Clair, "Véu de noiva" abriu a porta para tramas contemporâneas e modernas, que já eram rotina em outras emissoras desde "Beto Rockefeller" (1968, TV Tupi) e Regina estava lá, pioneira, junto a Cláudio Marzo, ao lado de quem, pelos anos seguintes, formaria um dos pares românticos seminais da TV brasileira. Em "Irmãos Coragem", eles viveram Duda e Ritinha - um jogador de futebol famoso e a namorada de infância com quem ele se vê obrigado a casar - e, apesar de formarem a segunda dupla romântica da novela, saíram antes do final para protagonizar "Minha doce namorada", de Vicente Sesso.


Foi a partir dessa novela, onde viveu a meiga Patrícia, que Regina começou a carregar o título de "Namoradinha do Brasil" - título esse que, apesar do carinho inerente, tornou-se um fardo a ser descartado para o bem do futuro de sua carreira. Apesar disso, ainda demoraria alguns anos para que Regina deixasse de lado a imagem de heroína impoluta que a acompanhava. Em 1972, ela protagonizou um de seus maiores sucessos. Na pele de Simone Marques, em "Selva de pedra" - mais uma mágica de Janete Clair no horário nobre - Regina conquistou o Brasil inteiro, com uma audiência até hoje impressionante: 100% dos aparelhos brasileiros estavam ligados no crucial capítulo onde Simone (que se fazia passar pela artista plástica Rosana Reis depois de ter sido dada como morta) é desmascarada pelo marido Cristiano Vilhena (Francisco Cuoco), a quem responsabilizava por seu atentado. O êxito da novela foi tanto que, embalado pela romântica "Rock and roll lullaby", a trama voltou ao ar em 1975 - em versão compacta enquanto a Globo gravava os primeiros capítulos de "Pecado capital" depois da proibição de "Roque Santeiro" pela Censura Federal - e em um remake, realizado em 1986 com Fernanda Torres no papel de Simone. Por melhor atriz que Fernandinha seja, porém, o sucesso não chegou nem perto do original: Simone Marques foi e sempre será Regina na memória dos espectadores.

Em 1973, uma nova parceira entre Regina e Cláudio Marzo chegou às telinhas: "Carinhoso", escrita por Lauro César Muniz com base no filme "Sabrina", de Billy Wilder, trazia a namoradinha da América no papel de Cecília, uma aeromoça dividida entre os irmãos milionários Humberto (Marzo) e Eduardo (Marcos Paulo). Sucesso de audiência no horário das 19h, "Carinhoso" teve que ser encurtada não por falhar em conquistar o público, mas sim porque Regina descobriu-se grávida pela segunda vez. Em abril de 1974, sua filha, a atriz Gabriela, veio ao mundo. Em maio, Regina já estava no elenco de "Fogo sobre terra", na pele de Bárbara, interesse amoroso de um dos personagens principais, o Pedro Azulão interpretado por Juca de Oliveira. O sucesso da novela - apesar da ação rígida da Censura - não impediu, porém, que Regina resolvesse finalmente dar uma virada na carreira. E, para surpresa de muitos, essa virada não começou na televisão, e sim no teatro. Na peça "Reveillon", de Flávio Márcio e dirigida por Paulo José, ela ousou ao interpretar Janete, uma prostituta que pouco ou nada lembrava seus doces personagens globais.


O retorno à TV só aconteceu em 1977 e dava prosseguimento a suas ambições de ser respeitada como atriz e não mais ser considerada apenas um símbolo romântico. "Nina", de Walter George Durst, foi apresentada às 22h e mostrava Regina como uma professora que, nos anos 20, lutava contra o absolutismo político de uma cidade do interior. O público não chegou a encantar-se, mas, persistente, Regina manteve-se firme em seus ideais. Viveu Branca Dias, a protagonista de "O santo inquérito", de Dias Gomes, no teatro em 1978 e em 1979 provocou a ira das senhoras de Santana com mais um de seus papéis icônicos: a socióloga que encarava um divórcio no seriado "Malu mulher", criado por Daniel Filho. Falando de temas-tabu com aborto, homossexualidade, orgasmo e masturbação, a série - premiada internacionalmente - incomodou os mais conservadores, mas deu à Regina a chance que ela sempre procurou de mostrar que seu talento ia além das mocinhas chorosas das telenovelas. Mas, apesar do imenso sucesso, Malu durou apenas dois anos. Depois disso, o público foi brindado com outro grande trabalho do trio que havia legado "Selva de pedra" à história: "Sétimo sentido", que estreou em 1982, foi escrita por Janete Clair e estrelada por Regina e Francisco Cuoco.

Em "Sétimo sentido", Regina vivia a paranormal Luana Camará, que incorporava a atriz italiana Priscilla Capricce e se envolvia, quando em transe, com seu pior inimigo, o advogado Tião Bento (Cuoco). Uma das grandes novela dos anos 80, "Sétimo sentido" nunca chegou a ser reprisada - Canal Viva, que tal essa surpresa ao público? - e, como curiosidade de bastidores, um dos capítulos mostrou, integralmente, uma apresentação de "O santo inquérito" estrelada por Capricce (coisa inimaginável hoje em dia, com a audiência sendo medida segundo a segundo e transformando qualquer novela em um jogo interativo com uma plateia frequentemente mal-acostumada com a mediocridade). Mas, depois de mais esse gol de placa, Regina voltou a ousar: rompeu com a Globo e foi produzir um seriado independente, "Joana", no qual ela vivia uma repórter investigativa. Apresentada na Rede Manchete - e depois no SBT - a série não chegou a ter uma audiência representativa, mas mostrava que, como atriz, ela não se prendia a uma zona de conforto.


Em 1985, veio aquele que se transformaria em mais um papel inesquecível e marcante: a viúva Porcina da novela "Roque Santeiro" - co-escrita por Dias Gomes, Aguinaldo Silva e Marcílio Moraes - deixou o país de boca aberta. Desbocada, quase amoral, espalhafatosa e dona de um humor jamais visto em uma interpretação de Regina, Porcina ditou moda, virou mania e dizimou toda e qualquer dúvida que ainda pudesse haver sobre a versatilidade da atriz. Ninguém poderia imaginar que seu próximo papel na tv - por mais diferente que pudesse ser - ela voltaria a monopolizar a atenção do país. Em 1988, Raquel Aciolli, uma mulher com honestidade à toda prova que precisava lutar contra a ambição desmedida e amoral da única filha (Glória Pires) na novela "Vale tudo" - de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères - tornou-se o símbolo de um país cansado da corrupção, da impunidade e do "jeitinho brasileiro". Por mais que as vilãs da novela - a Fátima de Glória Pires e a Odete Roitman de Beatriz Segall - tenham conquistado mais a atenção do público, é inegável que a força da novela (que voltou a chamar a atenção em sua reprise no Canal Viva) se mantém intocada, graças à força do texto, à direção inspirada e a algumas cenas antológicas - quem consegue esquecer da infame cena da prova do vestido de noiva, em que Raquel desmascara sua filha diante da futura sogra?


O trabalho seguinte de Regina Duarte na Globo foi outro sucesso retumbante: "Rainha da sucata", de Sílvio de Abreu, contava a trajetória de uma bem-sucedida empresária do ramo do ferro-velho, Maria do Carmo, em conquistar seu amor de adolescência, o ricaço decadente Edu Albuquerque Figueroa (Tony Ramos). Equilibrando o texto com um humor sofisticado e ingredientes do mais puro melodrama, a novela obteve ferrenha concorrência com "Pantanal", da TV Manchete, mas chegou a seu último capítulo com uma audiência animadora e elogios unânimes à protagonista de Regina - mais uma mulher dotada de seu irresistível carisma. Antes, porém, de voltar às novelas, Regina tentou novamente emplacar um seriado: "Retrato de mulher" lhe dava a oportunidade de viver uma personagem diferente a cada episódio e ser dirigida pelo então marido Del Rangel. A repercussão não foi das mais entusiasmadas, mas, em seguida, uma nova personagem conquistaria o país.


"História de amor" foi o primeiro encontro entre Regina e as Helenas de Manoel Carlos. Como uma mulher divorciada que se apaixonava por Carlos (José Mayer), um médico recém-casado com a fútil socialite Paula (Carolina Ferraz), ela casou-se perfeitamente com o texto naturalista e poético de Maneco - a ponto de, segundo ela mesma, não querer que a novela acabasse nunca. Como isso não foi possível, ela teve seu pedido atendido de outra forma: uma nova Helena, no horário nobre, e ao lado da filha Gabriela. "Por amor" novamente atingiu grandes índices de audiência ao contar a dramática história de uma mãe capaz de um grande sacrifício - entregar o bebê recém-nascido à filha mais velha, que acaba de perder o seu - mesmo que isso signifique perder o homem que ama (no caso, o Atílio interpretado por Antonio Fagundes, que já havia sido seu par romântico em "Nina" e "Vale tudo").

Antes que a terceira Helena surgisse em sua carreira - na novela "Páginas da vida", de 2006 - Regina voltou a contracenar com Gabriela na minissérie "Chiquinha Gonzaga", em 1999 e com Glória Pires, na fracassada "Desejos de mulher", onde viveu a estilista Andréa Vargas. Sua terceira parceria com Manoel Carlos foi um de seus últimos papéis de destaque. Na tenebrosa "Três irmãs", ela foi ignorada, assim como todo o elenco, que incluía Cláudia Abreu, Giovanna Antonelli e Carolina Dieckman. E no remake de "O astro", exibida em 2011, ela viveu Clô, a esposa/viúva/assassina do empresário Salomão Hayalla (Daniel Filho, que já havia sido seu marido em "Vale tudo"). Seu trabalho foi, provavelmente, um dos destaques da macrossérie e é, até hoje, sua derradeira aparição na tv.

Mas, além de ser uma atriz carismática e indiscutivelmente uma das mais importantes das artes cênicas nacionais, Regina Duarte também não é mulher de ficar quieta quando trata-se de posicionamentos políticos. O ápice das polêmicas ocorreu em 2002, quando gravou um depoimento, exibido no horário eleitoral gratuito, onde afirmava ter medo do futuro do Brasil caso Lula fosse eleito presidente. Sua frase no vídeo - "Eu tenho medo!" - ganhou as páginas dos jornais e o mundo artístico, tão afeito ao já citado patrulhamento ideológico, não perdoou suas declarações - o que não a impediu de reiterá-las em uma entrevista de 2006. O caráter firme de Regina também ficou óbvio em 1974, quando, eleita pelo Troféu Imprensa como a melhor atriz do ano de 1973 por "Carinhoso" - sua quinta vitória - ela recusou o prêmio, oferecendo-o à Eva Wilma por seu desempenho na primeira versão de "Mulheres de areia". Generosa, talentosa e carismática, Regina Duarte é, sem sombras de dúvida, um das maiores estrelas do nosso país e um ícone da teledramaturgia brasileira.


sábado, 18 de janeiro de 2014

"AMORES ROUBADOS", UM GRANDE ACERTO

Os pseudo-intelectuais que tem por hábito reclamar da baixa qualidade da televisão aberta brasileira, acusando-a de tudo de ruim que acontece nesse mundo e em qualquer outro que houver tiveram trabalho nas duas últimas semanas, graças a uma das minisséries mais ousadas (em vários sentidos) já exibidas pela Rede Globo. "Amores roubados", versão modernizada e substancialmente modificada do clássico "A emparedada da Rua Nova", publicado há cem anos pelo escritor pernambucano Carneiro Vilela, começou chamando a atenção graças ao marketing gratuito do romance entre Cauã Reymond e Ísis Valverde, mas conquistou pela qualidade insofismável do produto final, um casamento perfeito entre texto, direção, fotografia, trilha sonora e elenco. Em dez capítulos ficou provado que, ao contrário do que insistem em afirmar os críticos com implicância generalizada pelo veículo, arte e televisão podem integrar-se sem prejuízo de nenhum tipo.

Em tempos de novelas que insultam a capacidade cognitiva da audiência - como a atrocidade perpetrada por Walcyr Carrasco no horário nobre - foi um bálsamo estar diante de um texto forte e coerente como o de George Moura, que já havia assinado a autoria de outra minissérie, "O canto da sereia", baseado no livro de Nelson Motta. Ao contrário do que aconteceu ano passado, porém, quando o público teve acesso ao final da história através do romance, o autor - que contou com a supervisão competente de Maria Adelaide Amaral - teve a coragem de alterar drasticamente o final da obra literária. Os puristas - e alguns histéricos que nunca leram o livro e nem sabiam de sua existência até agora - chiaram. Mas nem mesmo eles podem negar que o desfecho de alguns personagens teve uma força e uma ousadia poucas vezes vista na televisão brasileira, valorizados pela direção firme e inspirada.

José Luiz Villamarin - outro egresso de "O canto da sereia", que também tem no currículo a co-direção de "Avenida Brasil" - apresentou, em "Amores roubados", um Nordeste a anos-luz de distância daquele que as novelas insistem em mostrar. Sem deixar de lado um cenário agreste, fotografado com maestria pelo veterano Walter Carvalho, Vilamarin mergulhou em uma sofisticação que sempre caminhou distante da região quando retratada na telinha. Pela primeira vez a plateia foi brindada com nordestinos ricos e elegantes, sem a obrigação de fazer humor em uma trama onde ele estaria absolutamente deslocado. E não deixou de ser muito bem-vinda a coragem em escalar atores consagrados em papéis distintos do normal: assim, Dira Paes brilhou com um dondoca sensual, Cassia Kis Magro chamou a atenção como uma prostituta veterana, Patrícia Pillar foi uma mãe com problemas nervosos e Murilo Benício, em uma de suas maiores atuações até hoje, roubou a cena como um vingativo marido traído. Fechando com chave de ouro, a direção escalou também os ótimos Irandhir Santos e Jesuíta Barbosa - do filme "Tatuagem" - em papéis cruciais que eles tiraram de letra. Com um elenco dessa envergadura - que deu também a Osmar Prado um papel que explorou todo o seu talento - a notícia do relacionamento entre Cauã Reymond e Ísis Valverde acabou sendo devidamente eclipsada.

Contando ainda com uma trilha sonora apropriada, bom gosto extremo em todas as suas sequências - fossem elas de sexo ou de violência física e psicológica - e uma construção dramática que deixava o espectador curioso para acompanhar o capítulo seguinte, "Amores roubados" deu uma aula de narrativa, direção e interpretação que deveria ser obrigatória para autores de TV - especialmente para veteranos arrogantes que não aceitam críticas a seus trabalhos medíocres e recheados de diálogos constrangedores. Foi uma enorme bola dentro da Globo nesse princípio de ano.

sábado, 4 de janeiro de 2014

AH, SE "O TEMPO E O VENTO" TIVESSE SIDO UMA REAL MINISSÉRIE...

Em 1985, em comemoração a seus 20 anos de existência, a Rede Globo lançou a minissérie "O tempo e o vento", baseada na primeira parte da extensa trilogia escrita por Érico Veríssimo, "O continente". Adaptada por Doc Comparato e dirigida por Paulo José em 20 capítulos, a obra deixou um legado de atuações marcantes, em um elenco escalado a dedo que casou com perfeição com os icônicos personagens de Veríssimo. O roteiro de Comparato - que contou com a colaboração de Regina Braga - aproveitou o número generoso de capítulos para desenvolver cada personagem da saga, retratado com fidelidade quase absoluta em relação à obra do autor gaúcho. Na versão anos 80 o público teve tempo para conhecer e se importar com o romance entre Ana Terra e Pedro Missioneiro, a inimizade entre os Terra Cambará e os Amaral, a história de amor entre Bibiana e Capitão Rodrigo, a ambiguidade de Luzia e a tensão existente no cerco ao sobrado liderado por Licurgo, sem questionar o fato de o elenco principal não ter dado lugar a quase nenhum ator nascido no Rio Grande do Sul - com a gloriosa exceção do próprio diretor Paulo José.

Então Jayme Monjardim anunciou sua intenção de transformar "O continente" em filme. Celebrado pela delicadeza com que cerca seus trabalhos na televisão - como as novelas "A vida da gente" e "Páginas da vida", além da minissérie "Maysa, quando fala o coração", que falava sobre a polêmica cantora que era sua mãe - Monjardim não obteve o mesmo êxito quando estreou no cinema com "Olga", uma história forte e poderosa que foi criticada principalmente por não ter conseguido fugir das armadilhas da linguagem televisiva. E não é que ele repetiu o erro? Tivesse concebido sua visão sobre a família Terra Cambará em formato de minissérie - longa, cuidadosa e com tempo suficiente para dar a mesma atenção ao visual e ao desenvolvimento das personagens - ele provavelmente teria em mãos um clássico deslumbrante. Mas deu um passo maior que a perna e esvaziou a trama com uma rapidez narrativa que confundiu o público que não teve a oportunidade de ler o livro em que se baseia - e até mesmo aquele que teve.


Se em formato de minissérie - com meros três capítulos - "O tempo e o vento" soou corrido, superficial e em alguns momentos negligente com vários elementos da prosa de Veríssimo, é de se imaginar como resulta em formato de filme. É óbvio que o desafio de condensar os dois primeiros volumes da história - que conta com três narrativas que se intercalam com uma quarta trama que encerra a primeira fase do livro - não é dos mais fáceis e aí reside o erro maior da ambição de Monjardim. Cada uma das narrativas - "Ana Terra", "Um certo Capitão Rodrigo", "A teiniaguá" e "O sobrado" - serve perfeitamente para um filme de duas horas e, nas mãos do diretor, são pulverizadas pela pressa extrema, que não permite a nenhuma delas a profundidade adequada. Sendo assim, a relação entre Ana Terra (Cleo Pires) e sua família não é explorada a contento, assim como seu romance com Pedro Missioneiro, que mais parece uma atração puramente sexual do que amor. O mesmo acontece com Capitão Rodrigo e Bibiana, cujo amor só é crível por causa das interpretações de Thiago Lacerda e Marjorie Estiano - posteriormente substituída pela gaúcha Janaína Kremer e pela monstra Fernanda Montenegro, todas brilhando sempre que o roteiro permitia. A história de Luzia (Mayana Moura), a nora de Bibiana, também sofre do mal da pressa, a ponto de seu destino ser simplesmente suprimido na narrativa. E "O sobrado" - que liga todas as outras histórias - é deixado de lado, servindo apenas de cenário para o reencontro entre a Bibiana de Montenegro com seu amado Capitão Rodrigo - e é meio estranho que, para fins dramáticos (aka explicações para a confusa audiência), ela conte toda a história de sua família para ele... incluindo a sua própria.

A fotografia de "O tempo e o vento" é magistral. O premiado Afonso Beatto é mestre, tendo em seu currículo colaboração até mesmo com Pedro Almodovar (em "Carne trêmula") e as paisagens do sul do país, bairrismo à parte, são um deleite para qualquer iluminador. A direção de arte e os figurinos também são primorosos - assim como já havia acontecido em "Olga" - e a trilha sonora épica dá o tom exato em muitos momentos (mesmo que em outros ela soe redundante). Mas é no elenco que o filme/minissérie tem seu maior trunfo. Mesclando rostos conhecidos da televisão nacional - até como forma de facilitar comercialmente o sucesso do investimento - com atores da cena gaúcha escolhidos a dedo, Monjardim teve, salvo raras exceções (como a escalação de Cleo Pires como Ana Terra, em uma escolha um tanto preguiçosa, já que sua mãe, Gloria, criou a mesma personagem com mais força e talento), um bom olho. Thiago Lacerda mostrou que sabe ser um Capitão Rodrigo tão carismático quanto o de Tarcísio Meira. Marjorie Estiano e Janaína Kremer prepararam com talento o caminho para que Fernanda Montenegro assumisse Bibiana. E Mayana Moura fez o que pode com sua Luzia - cuja história simplesmente foi limada pela Globo na reprise da série de 85, onde foi vivida por Carla Camuratti, e na edição em DVD.

Em uma história que dá às mulheres mais força e atenção do que aos homens, vários atores tiveram boas oportunidades, como os gaúchos Zé Adão Barbosa, Cris Pereira, Leonardo Machado, José Henrique Ligabue e Rafael Cardoso. Mas é uma pena que tal história, tão repleta de personagens esplêndidos e situações dramáticas emocionantes, tenha sido tratada de forma tão superficial. Um roteiro mais cuidadoso e uma direção que se decidisse entre a linguagem da tv e do cinema poderiam fazer uma extraordinária diferença. Ainda assim, melhor Érico Veríssimo do que Walcyr Carrasco.