sábado, 4 de janeiro de 2014

AH, SE "O TEMPO E O VENTO" TIVESSE SIDO UMA REAL MINISSÉRIE...

Em 1985, em comemoração a seus 20 anos de existência, a Rede Globo lançou a minissérie "O tempo e o vento", baseada na primeira parte da extensa trilogia escrita por Érico Veríssimo, "O continente". Adaptada por Doc Comparato e dirigida por Paulo José em 20 capítulos, a obra deixou um legado de atuações marcantes, em um elenco escalado a dedo que casou com perfeição com os icônicos personagens de Veríssimo. O roteiro de Comparato - que contou com a colaboração de Regina Braga - aproveitou o número generoso de capítulos para desenvolver cada personagem da saga, retratado com fidelidade quase absoluta em relação à obra do autor gaúcho. Na versão anos 80 o público teve tempo para conhecer e se importar com o romance entre Ana Terra e Pedro Missioneiro, a inimizade entre os Terra Cambará e os Amaral, a história de amor entre Bibiana e Capitão Rodrigo, a ambiguidade de Luzia e a tensão existente no cerco ao sobrado liderado por Licurgo, sem questionar o fato de o elenco principal não ter dado lugar a quase nenhum ator nascido no Rio Grande do Sul - com a gloriosa exceção do próprio diretor Paulo José.

Então Jayme Monjardim anunciou sua intenção de transformar "O continente" em filme. Celebrado pela delicadeza com que cerca seus trabalhos na televisão - como as novelas "A vida da gente" e "Páginas da vida", além da minissérie "Maysa, quando fala o coração", que falava sobre a polêmica cantora que era sua mãe - Monjardim não obteve o mesmo êxito quando estreou no cinema com "Olga", uma história forte e poderosa que foi criticada principalmente por não ter conseguido fugir das armadilhas da linguagem televisiva. E não é que ele repetiu o erro? Tivesse concebido sua visão sobre a família Terra Cambará em formato de minissérie - longa, cuidadosa e com tempo suficiente para dar a mesma atenção ao visual e ao desenvolvimento das personagens - ele provavelmente teria em mãos um clássico deslumbrante. Mas deu um passo maior que a perna e esvaziou a trama com uma rapidez narrativa que confundiu o público que não teve a oportunidade de ler o livro em que se baseia - e até mesmo aquele que teve.


Se em formato de minissérie - com meros três capítulos - "O tempo e o vento" soou corrido, superficial e em alguns momentos negligente com vários elementos da prosa de Veríssimo, é de se imaginar como resulta em formato de filme. É óbvio que o desafio de condensar os dois primeiros volumes da história - que conta com três narrativas que se intercalam com uma quarta trama que encerra a primeira fase do livro - não é dos mais fáceis e aí reside o erro maior da ambição de Monjardim. Cada uma das narrativas - "Ana Terra", "Um certo Capitão Rodrigo", "A teiniaguá" e "O sobrado" - serve perfeitamente para um filme de duas horas e, nas mãos do diretor, são pulverizadas pela pressa extrema, que não permite a nenhuma delas a profundidade adequada. Sendo assim, a relação entre Ana Terra (Cleo Pires) e sua família não é explorada a contento, assim como seu romance com Pedro Missioneiro, que mais parece uma atração puramente sexual do que amor. O mesmo acontece com Capitão Rodrigo e Bibiana, cujo amor só é crível por causa das interpretações de Thiago Lacerda e Marjorie Estiano - posteriormente substituída pela gaúcha Janaína Kremer e pela monstra Fernanda Montenegro, todas brilhando sempre que o roteiro permitia. A história de Luzia (Mayana Moura), a nora de Bibiana, também sofre do mal da pressa, a ponto de seu destino ser simplesmente suprimido na narrativa. E "O sobrado" - que liga todas as outras histórias - é deixado de lado, servindo apenas de cenário para o reencontro entre a Bibiana de Montenegro com seu amado Capitão Rodrigo - e é meio estranho que, para fins dramáticos (aka explicações para a confusa audiência), ela conte toda a história de sua família para ele... incluindo a sua própria.

A fotografia de "O tempo e o vento" é magistral. O premiado Afonso Beatto é mestre, tendo em seu currículo colaboração até mesmo com Pedro Almodovar (em "Carne trêmula") e as paisagens do sul do país, bairrismo à parte, são um deleite para qualquer iluminador. A direção de arte e os figurinos também são primorosos - assim como já havia acontecido em "Olga" - e a trilha sonora épica dá o tom exato em muitos momentos (mesmo que em outros ela soe redundante). Mas é no elenco que o filme/minissérie tem seu maior trunfo. Mesclando rostos conhecidos da televisão nacional - até como forma de facilitar comercialmente o sucesso do investimento - com atores da cena gaúcha escolhidos a dedo, Monjardim teve, salvo raras exceções (como a escalação de Cleo Pires como Ana Terra, em uma escolha um tanto preguiçosa, já que sua mãe, Gloria, criou a mesma personagem com mais força e talento), um bom olho. Thiago Lacerda mostrou que sabe ser um Capitão Rodrigo tão carismático quanto o de Tarcísio Meira. Marjorie Estiano e Janaína Kremer prepararam com talento o caminho para que Fernanda Montenegro assumisse Bibiana. E Mayana Moura fez o que pode com sua Luzia - cuja história simplesmente foi limada pela Globo na reprise da série de 85, onde foi vivida por Carla Camuratti, e na edição em DVD.

Em uma história que dá às mulheres mais força e atenção do que aos homens, vários atores tiveram boas oportunidades, como os gaúchos Zé Adão Barbosa, Cris Pereira, Leonardo Machado, José Henrique Ligabue e Rafael Cardoso. Mas é uma pena que tal história, tão repleta de personagens esplêndidos e situações dramáticas emocionantes, tenha sido tratada de forma tão superficial. Um roteiro mais cuidadoso e uma direção que se decidisse entre a linguagem da tv e do cinema poderiam fazer uma extraordinária diferença. Ainda assim, melhor Érico Veríssimo do que Walcyr Carrasco.

Nenhum comentário:

Postar um comentário